13 de mar. de 2006

Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)

Os gatos do Guimarães
V


A morte é essencialmente imprevisível no que respeita ao momento exato que fique claro, não se fala da morte como uma probabilidade. É o que se costuma pensar. Entretanto, não era esse o aspecto do óbito que pacificava a alma de Dona Helenilda. A irresponsabilidade, a inculpabilidade, o ar de inocência às avessas que se sobrepunha sobre os resultados de todos os atos do vivente após sua morte era o guia do comportamento daquela mulher. Havia uma atração infantil, um que de transgressão em tudo que ela fazia. Sim, porque se está a comprometer as sólidas bases de uma moral, que nos mantém em convivência pacifica, ao se pensar na morte como uma libertação e se comportar em vida ao sabor do instinto, sem esperar por um julgamento póstumo.

Aos cinco anos, Dona Helenilda já sabia ler e a partir de então tomou os livros como companheiros, desenvolveu profundo zelo por eles e os abraçou como uma vocação, um chamado, um fazer no mundo. Em contrapartida a humanidade foi fendida em duas metades, de um lado aqueles que, como ela, viviam a orbitar os livros, sejam como senhores criadores, conservadores ou como servos leitores e os demais pouco afeitos aos labirintos das letras. Aos primeiros, a liberdade da biblioteca, a falta de ordem, o folhear errático e os saltos entre as citações, aos últimos, o cordão de Ariadne, desde o balcão da bibliotecária até onde ela achasse por bem dar tensão e resgatar o indigno viajante.

A aparente amabilidade para com todos os usuários da biblioteca escondia essa sutil distinção entre os homens. Para uns a bibliotecária facultava direitos, a outros servia, livrando-os dos riscos, mas com profundo desprezo. A dispensável ordem em que os livros deveriam ser dispostos era a cadeia da lógica impessoal, o meio de garantir ao comum dos seres, desarmado das habilidades literárias, uma segurança dispensável ao senhor das letras, que se guiava por instinto, por sua sensibilidade, algo avesso às lógicas impessoais.

Essa era a causa de uns não encontrarem os livros. Dona Helenilda nunca os organizava nas estantes, segundo as ordens alfabéticas e numerológicas impessoais, antes os volumes eram dispostos segundo os amores da bibliotecária, uns mais próximos para contemplação constante, objetos de ardente paixão, outros a meio caminho, como amores mornos estáveis em quem se confia a ausência do olhar constante, outros ainda mais afastados, quase perdidos, uns restos de relações um dia incandescentes e rapidamente extintas ou desgastadas gradualmente pelo tempo e, por fim, junto a parede ao fundo, alguns que nunca chegaram a ser notados ou que causaram profunda tristeza, que traíram, que mentiram e por isso foram abandonados e repousavam desprezados num horizonte distante como inimigos além da fronteira. E, é claro, tal ordem não respeitava uma estabilidade cronológica, a paixão de hoje podia facilmente tornar-se o traidor de amanhã e uma nova faceta do ser amado recém descoberta, transformava-o em objeto de obscuros desejos de uma intimidade próxima.

Também se explicavam assim, as furtivas visitas que Dona Helenilda fazia à biblioteca durante a noite. Após cessar o movimento das ruas, quando todos os viventes ou estavam temporariamente entregues aos braços da morte ou dedicados às artes reclusas, a mulher caminhava pelas ruas, evidentemente sozinha, mas adjetivo dispensável, porque como se sabe, era de sua natureza ser sozinha a qualquer hora, adentrava a biblioteca, tomando o cuidado de trancar a porta por dentro, não por medo de ser surpreendida, mas para evitar que um dia ou, melhor dizendo, uma noite ter de prestar desnecessárias explicações a qualquer um dos reles servidores que de dia maculavam o lugar com seu comportamento de monótonos trabalhadores à espera da hora da saída. Pela mesma razão, Dona Helenilda também não acendia luzes o que lhe causava grande desconforto, mas era largamente recompensado pelo prazer que adivinha das horas de leitura e manuseio dos livros em meio ao silêncio e a escuridão. Então, antes que os viventes despertassem da provisória morte ou os amantes se dessem por satisfeitos e as horas de trabalho chamassem a todos, Dona Helenilda deixava a biblioteca e trancava a porta, desta vez por fora, agora pelos motivos que movem a todos, para manter os ladrões deste lado.

7 de mar. de 2006

Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)

Os gatos do Guimarães
IV


A biblioteca estava sempre cheia, a quantidade de leitores que freqüentavam aquela biblioteca fazia inveja a outras unidades semelhantes. Era possível encontrar títulos com listas de até vinte leitores na reserva. Dona Helenilda atendia a todos e os conhecia pelo nome, além de estar sempre disposta a receber novos interessados. Era uma entusiasta dos benefícios da leitura para a educação e o progresso de um povo, mas não chegava a ser militante das grandes causas, limitava-se a fazer seu trabalho com eficiência, atendendo com toda a dedicação e presteza a todos os leitores.

Um desses leitores novos, um menino cuja aparente idade denotava que acabara de ser iniciado no mundo das letras, em suas primeiras visitas à biblioteca tomava logo o rumo do fichário de autores, jamais se soube porque ele não se interessava pelo fichário de títulos. De toda a forma o menino dirigia-se fichário de autores, escolhia, tomava nota com o lápis que ficava amarrado com um barbante sobre o fichário junto com uma caixinha onde havia retalhos de papel, constantemente reabastecidos por Dona Helenilda e, encaminhava-se para as estantes. Invariavelmente, nas primeiras visitas à biblioteca, o menino retornava das estantes com as mãos vazias e um olhava que informava, até para o mais insensível dos homens, a incomensurável decepção de não se achar algo por que se buscou.

Nesses momentos, o recurso imediato era Dona Helenilda, que estava sempre à disposição. Qualquer outra pessoa não se daria por rogado e diante de tal rotina de insucessos, passaria a desencorajar o leitor, que incapaz de encontrar os livros, jamais poderia lê-los. Afinal qual a dificuldade da tarefa de, estando de posse do nome de um autor, encontrar a ficha que lhe corresponde, nela elencar os títulos que lhe interessam para, em seguida, procurar o código do título e com ele se buscar às estantes devidamente organizadas, segundo a ordem numérica e lógica e, com as correspondentes etiquetas a indicar o caminho, a direção, o endereço o destino daquilo que se busca?

Tenha a santa paciência, some-se a isso o fato de todo o trabalho e dedicação depreendidos na organização de harmonioso sistema de buscas, estamos diante de um evento desses que deixa qualquer cristão possuído pelo senhor dos infernos. Mas Dona Helenilda não sentia ódio, ela não. Respondia a mesma pergunta quantas vezes ela fosse feita. O nosso menino então, pode ser que estivéssemos distraídos um dia ou outro e não tenhamos percebido e contado, mas foram bem umas dez ou doze vezes que ele se dirigiu a Dona Helenilda, sempre do mesmo jeito. Não encontrei o livro. Acho até que ele nunca encontrou um livro sem ajuda dela, mas todas as vezes, e isso podemos afirmar, ainda que correndo o riscos de termos nos distraído um dia ou outro, todas as vezes Dona Helenilda saiu do balcão, foi até a estante e os dois voltaram com o livro desejado. E a decepção daquele olhar anterior, agora era admiração e agradecimento.

Tem ou tem razão essa mulher em relação à adequação dos elementos concorrentes com os resultantes da educação. A paciência, a admiração, o agradecimento são as bases do caráter do bom mestre, não há quem não aprenda encontrando um mestre com esses predicados e, como resultado, a educação liberta, emancipa e ilumina o caráter do discípulo. No nosso caso, concorreu significativamente a atitude docente de Dona Helenilda na emancipação do menino em questão.

A prova do que se diz, já que para os incrédulos tudo tem que ter uma prova, a ciência não deve nega-las e a rotunda afirmação anterior ganha ares de teoria, é que o menino passou a ser um leitor regular, dia sim, dia não estava na biblioteca em busca de um novo livro, lia um livro a cada dois dias religiosamente, se é que religião necessita de tamanha carga de leitura. Mas isso, antes de provar a teoria pedagógica nunca escrita de Dona Helenilda, era a gratificação do trabalho e da dedicação daquela mulher, era o que tornava digno e válido o esforço cotidiano daquela servidora, porque certamente, já que estamos no campo das teorias, surgirão aqueles a dizer que paciência, admiração e agradecimento são os fomentadores da idolatria e da tirania cegas e que alguém que mesmo lendo um livro a cada dois dias, toda a vez que vai a biblioteca, recorre a bibliotecária para encontrar um livro não é livre, nem emancipado em nenhum dos sentidos dados pelo dicionário ou pelo uso corrente dessas palavras.

4 de mar. de 2006

Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)

Os gatos do Guimarães
III


Falando assim, como se vem falando do senhor diretor, até parece que o homem era um trabalhador menos dedicado, os mais atentos diriam até que o homem era relaxado mesmo, um preguiçoso. Nada mais leviano, ninguém chega a diretor assim, à toa, sem mais nem menos, quando pouco o sujeito precisa ser bom bajulador e há casos extremos em que além disso, a criatura acumula predicados de competência. Então, alto lá, o diretor da biblioteca era um homem talhado para o cargo, tinha perfil, como se diz atualmente, podia não ter lido muitos livros, lera alguns poucos é verdade, romance, romance mesmo, lera umas histórias de detetive, científicos ou filosóficos, os tinha em casa, numa bela estante que ficava logo na sala de estar, não havia como ignorar, era um homem de notório saber.

A administração da biblioteca era algo do qual não se podia fazer qualquer queixa. As verbas, para iniciar pelo calcanhar de Aquiles de qualquer administrador público, tinham prestações de contas impecáveis, invariavelmente somavam-se entradas e saídas, créditos e débitos, restos e acertos e nada, nenhum erro. O pessoal sempre satisfeito, motivado e produtivo, bastava ver como a biblioteca funcionava, nenhuma queixa por parte dos leitores, se houvesse um índice de satisfação medido em sorrisos e gargalhadas, o comparecimento à cantina, note bem, a qualquer hora do expediente, constatava o bem estar dos funcionários daquela biblioteca. Um exemplo para a administração pública. Soma-se a isso, o fato, já mencionado, de que essa competência era exercida sem que o diretor se quer precisasse abandonar sua sala ou mesmo levantar-se de sua cadeira. O apreço e o respeito dos demais funcionários por aquela figura era tamanho que, além de Dona Helenilda que, como se sabe, não ia à cantina, o diretor também recebia seu café em sua mesa com direto aos biscoitos água e sal e manteiga.

Agora, o melhor adjetivo aplicável àquele homem era, sem dúvida, democrata. Desde o primeiro dia em que assumiu o cargo, desde o primeiro momento, quando fez um discurso inaugural, logo após a nomeação, suas primeiras palavras foram, estou diretor, sou funcionário como todos os demais, minha gestão será marcada pela democracia e participação. Essas podem ser palavras ensaiadas, da boca para fora ou chavões, como se diz por aí, mas no caso de nosso diretor, foram postas em prática e o dia-a-dia da biblioteca o servia de testemunha, não se tomava uma só decisão, por menos importante que fosse o assunto, sem que todos se reunissem para debater, mesmo nas emergências, quando o rigor da hora obrigaria a qualquer outro usar de punho ditatorial, o diretor ouvia serenamente as críticas. Pode-se acusa-lo de tudo, mas não era um homem de idéias fixas, fechado a inovações, muito pelo contrário, mudava de idéia sempre, tudo a bem da boa administração e da satisfação dos contribuintes, os verdadeiros guias do serviço público, como fez questão de afirmar ao final do já referido discurso.

3 de mar. de 2006

Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)

Os gatos do Guimarães
II

Aqui, ali, acolá, sempre prestativa. Dona Helenilda era um faz tudo na biblioteca, atendia, guardava livros, organizava fichas, limpava, pintava e bordava. Um dia o diretor questionou-se da necessidade de tantos funcionários para manter a biblioteca em funcionamento. Desnecessário dizer que essa era a principal razão das intrigas contra aquela exemplar funcionária e que, em se tratando de repartição pública, jamais qualquer plano de reestruturação do quadro de pessoal seria posto em prática.

Um batalhão de arquivistas, restauradores que preferiam ser chamados de técnicos em manutenção do patrimônio, e até faxineiros habitava a biblioteca. Todos chegavam depois de Dona Helenilda e só começavam a trabalhar no momento em que o ponteiro do relógio que ficava preso no alto da parede do saguão da biblioteca se sobrepunha ao número XII, até aí era um burburinho de conversas e risadas que preenchia do saguão. Às sete horas, em ponto, o porteiro abria as portas, modo de dizer, que era só uma porta, que dava da biblioteca para a via pública. E tarefa de porteiro resume-se a abrir e fechar as portas, então o homem, na forma da lei, se dirigia para a cantina e de lá retornava às dezessete horas para fechar as portas, e como as abria, as fechava, estivesse alguém querendo entrar, só entrava após as sete, estivesse na biblioteca, se retirava antes das dezessete.

A cantina, o coração do dragão, era um burburinho só, o dia inteiro. A copeira, dedicada e prendada funcionária, provedora de diários seis litros de café, era testemunha viva do rigor do serviço público, única pessoa a ocupar um posto na biblioteca vago após uma demissão de outro servidor por incompetência. A copeira anterior fora demitida a bem do serviço público, fazia um café intragável. Assim que chegaram as primeiras denúncias, o senhor diretor nem mesmo promoveu o chamado inquérito administrativo, de certo que ele próprio conhecia a falta de capacidade da funcionária, tratou de expedir ofícios e despachos e logo a mulher estava na rua e sua substituta contratada.

A atual copeira era mulher de ciência, em sua primeira semana tratou de fazer minucioso levantamento dos gostos de todos os funcionários, forte, fraco, preto, suave, com muito ou com pouco açúcar, amargo, com adoçante, em copo, em xícara, com leite ou puro. Havia a certeza de que ao se encostar no balcão da cantina, se receberia exatamente aquilo que se queria, ninguém mais precisava fazer pedidos minuciosos. Em poucos dias, todas as garrafas térmicas estavam com etiquetas. Assim, ficou fácil saber porque a copeira anterior fora demitida. Sobrou um único desafio ao cuidadoso e detalhado levantamento, Dona Helenilda. Para esta, tanto fazia, jamais notara na copeira que fora demitida, constantemente esquecia-se de tomar o café que lhe era trazido, abandonava-o para ser recolhido e jogado no lixo. Zelosa de seu trabalho, a copeira chegou a interroga-la, se não gostava do café e testou diferentes receitas, mas sem sucesso. A conclusão era cientificamente clara, Dona Helenilda era indiferente ao café.

Dia após dia, essa era a rotina da biblioteca, os leitores eram atendidos, faziam seus empréstimos, suas devoluções, pagavam multas, faziam inscrição, procuram livros para pesquisa e para diversão ou vinham apenas para ler o diário. A biblioteca sempre cheia, jovens estudantes, donas de casa ou idosos à procura de um passa-tempo.

2 de mar. de 2006

Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)

Os gatos do Guimarães

I


Dona Helenilda era dessas personagens prontas, dessas que Veja elogia abundantemente, não precisava inventar nada, o verdadeiro sonho de autor. Um corpanzil embrulhado na chita mais extravagante, cabelo em coque preso por um lápis, óculos de armação de tartaruga e, mesmo nos dias mais frios de inverno, uma gotinha de suor percorrendo a fronte.

O melhor de tudo é que Dona Helenilda estava sempre na biblioteca, todos os dias era a primeira funcionária a chegar, o diretor há muitos anos já lhe confiara as chaves, das quais não havia outra cópia. Pontualmente, as sete da manhã, ela já estava atrás do balcão. Eficiência ímpar, elogiada até pelo Governador. Qualquer livro que se quisesse, bastava pedir que Dona Helenilda indicava a estante. Sem exageros, mas naquela época não havia computadores.

A eficiência de Dona Helenilda só se comparava com sua modéstia. A mulher era uma referência, espécie de ponto turístico. Quando alguém recebia uma visita, logo levava o recém chegado à biblioteca. O forasteiro, claro, era só exclamação de espanto. Como podia aquilo, um livro após o outro, todos ela sabia onde estavam. Que memória! Nada, meu filho, não lembro de nada, é só organização. Pura eficiência e modéstia.

Entre os demais funcionários da biblioteca a admiração não era um sentimento unânime, havia um ou outro que dizia que Dona Helenilda chegava mais cedo porque morava a paredes meias com a biblioteca, que ela só sabia a localização exata de todos os livros, porque era sempre ela quem os arrumava. Alguns desses, por assim dizer descontentes, até chegavam a fazer queixas ao diretor. Mas o homem nem se dava o trabalho de levantar da cadeira, apenas dizia que faria averiguações das faltas denunciadas, mas nunca inquiriu Dona Helenilda. Para dizer a verdade, se não notássemos a entrada e saída do diretor no início e no término do expediente, seriamos tentados a afirmar que o homem dormia na biblioteca, sentado na cadeira, atrás da mesa onde havia uma bem polida placa de metal sobre um pedestal de madeira onde se lia DIRETOR.

As intrigas sempre chegavam aos ouvidos da zelosa bibliotecária. O cafezinho precisava ser embalado por alguma conversar e o assunto circulava por amenidades mil e por horas a fio, enquanto os funcionários se revesavam na cantina, antes de eleger o cotidiano da repartição como o grande assunto. Nessa hora formavam-se duas facções. Uns que davam a conhecer as intrigas, inconformados com as injustiças das acusações caluniosas e outros, é bem verdade a minoria, sempre a propalar as alegadas faltas de Dona Helenilda, à espera de seu descontrole ou de uma reação menos educada, para aí sim, trazer à tona o verdadeiro caráter daquela senhora. Mas, em vida, Dona Helenilda jamais motivou tanto, era só serenidade, nem na cantina aparecia. Só tomava café quando a copeira lembrava-se de levar-lhe uma xícara até o balcão ou entre as prateleiras, onde estava arrumando os livros.