Os gatos do Guimarães
V
A morte é essencialmente imprevisível no que respeita ao momento exato que fique claro, não se fala da morte como uma probabilidade. É o que se costuma pensar. Entretanto, não era esse o aspecto do óbito que pacificava a alma de Dona Helenilda. A irresponsabilidade, a inculpabilidade, o ar de inocência às avessas que se sobrepunha sobre os resultados de todos os atos do vivente após sua morte era o guia do comportamento daquela mulher. Havia uma atração infantil, um que de transgressão em tudo que ela fazia. Sim, porque se está a comprometer as sólidas bases de uma moral, que nos mantém em convivência pacifica, ao se pensar na morte como uma libertação e se comportar em vida ao sabor do instinto, sem esperar por um julgamento póstumo.
Aos cinco anos, Dona Helenilda já sabia ler e a partir de então tomou os livros como companheiros, desenvolveu profundo zelo por eles e os abraçou como uma vocação, um chamado, um fazer no mundo. Em contrapartida a humanidade foi fendida em duas metades, de um lado aqueles que, como ela, viviam a orbitar os livros, sejam como senhores criadores, conservadores ou como servos leitores e os demais pouco afeitos aos labirintos das letras. Aos primeiros, a liberdade da biblioteca, a falta de ordem, o folhear errático e os saltos entre as citações, aos últimos, o cordão de Ariadne, desde o balcão da bibliotecária até onde ela achasse por bem dar tensão e resgatar o indigno viajante.
A aparente amabilidade para com todos os usuários da biblioteca escondia essa sutil distinção entre os homens. Para uns a bibliotecária facultava direitos, a outros servia, livrando-os dos riscos, mas com profundo desprezo. A dispensável ordem em que os livros deveriam ser dispostos era a cadeia da lógica impessoal, o meio de garantir ao comum dos seres, desarmado das habilidades literárias, uma segurança dispensável ao senhor das letras, que se guiava por instinto, por sua sensibilidade, algo avesso às lógicas impessoais.
Essa era a causa de uns não encontrarem os livros. Dona Helenilda nunca os organizava nas estantes, segundo as ordens alfabéticas e numerológicas impessoais, antes os volumes eram dispostos segundo os amores da bibliotecária, uns mais próximos para contemplação constante, objetos de ardente paixão, outros a meio caminho, como amores mornos estáveis em quem se confia a ausência do olhar constante, outros ainda mais afastados, quase perdidos, uns restos de relações um dia incandescentes e rapidamente extintas ou desgastadas gradualmente pelo tempo e, por fim, junto a parede ao fundo, alguns que nunca chegaram a ser notados ou que causaram profunda tristeza, que traíram, que mentiram e por isso foram abandonados e repousavam desprezados num horizonte distante como inimigos além da fronteira. E, é claro, tal ordem não respeitava uma estabilidade cronológica, a paixão de hoje podia facilmente tornar-se o traidor de amanhã e uma nova faceta do ser amado recém descoberta, transformava-o em objeto de obscuros desejos de uma intimidade próxima.
Também se explicavam assim, as furtivas visitas que Dona Helenilda fazia à biblioteca durante a noite. Após cessar o movimento das ruas, quando todos os viventes ou estavam temporariamente entregues aos braços da morte ou dedicados às artes reclusas, a mulher caminhava pelas ruas, evidentemente sozinha, mas adjetivo dispensável, porque como se sabe, era de sua natureza ser sozinha a qualquer hora, adentrava a biblioteca, tomando o cuidado de trancar a porta por dentro, não por medo de ser surpreendida, mas para evitar que um dia ou, melhor dizendo, uma noite ter de prestar desnecessárias explicações a qualquer um dos reles servidores que de dia maculavam o lugar com seu comportamento de monótonos trabalhadores à espera da hora da saída. Pela mesma razão, Dona Helenilda também não acendia luzes o que lhe causava grande desconforto, mas era largamente recompensado pelo prazer que adivinha das horas de leitura e manuseio dos livros em meio ao silêncio e a escuridão. Então, antes que os viventes despertassem da provisória morte ou os amantes se dessem por satisfeitos e as horas de trabalho chamassem a todos, Dona Helenilda deixava a biblioteca e trancava a porta, desta vez por fora, agora pelos motivos que movem a todos, para manter os ladrões deste lado.
2 comentários:
Acabei de descobrir que vc tem um Bolg
arrasou em Prof.
lá no Tempos Anorexicos tbm tem post novo
Very pretty site! Keep working. thnx!
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