11 de set. de 2005

No Escurinho do Cinema (Lawrence da Arábia)

Os Sete Pilares da Sabedoria

Um dos filmes que eu sempre quis assistir era Lawrence da Arábia (David Lean / EUA / 1962). Não sei se era o título ou as imagens do filme nas chamadas da televisão. A verdade é que eu não tinha a menor idéia sobre do que tratava o filme e acho até que, no fundo, eu pensava que era apenas um filme de aventura e isso era o que me atraia.
Tentei assistir ao filme algumas vezes, mas abandonava, dormia ou coisa pior... Não era o grande e empolgante filme de aventura que eu queria ver. Tinha lá seus momentos de aventura, mas na maior parte de seus 222 minutos (isso mesmo, 222 minutos!) era uma seqüência de conversas em gabinetes e tendas: política e política, enormes planos-seqüência panorâmicos das paisagens do deserto, o modo de organização da narrativa (isso é capítulo à parte) também não ajudava, era tudo muito confuso e cansativo. Mas, eu precisava ver esse filme.
Algo deveria me preparar para ver o filme. Por que aquele era um filme importante? As vezes, eu tinha a impressão que muitas das pessoas que achavam aquele filme importante não tinha a menor idéia do se tratava, acho até que muitos o tomavam por um filme de aventura mesmo e como se conformavam com pouco, ignoravam completamente uns oitenta por cento do filme e assistiam apenas às batalhas e brigas, havia também aqueles itelectuais (ou pseudointelectuais) que mencionavam o filme apenas para parecerem mais cultos, mais distantes desse mundo terreno, onde socos são apenas socos e balas são apenas balas, sem segundas interpretações. Você pode até não acreditar, mas há gente desse tipo.
Passei a utilizar minha técnica predileta que é arrudiar (ficar em volta) aquilo que me interessa. Isso funciona muito bem com as coisas, mas é pouco eficiente com as pessoas. A técnica é a seguinte, aprender tudo o que puder sobre o seu objeto do desejo. Isso levado ao pé da letra me obrigaria a fazer um curso completo de ginecologia, mas não mudemos de assunto.
Quem foi Thomas Edward Lawrence, T. E. Lawrence ou simplesmente, o Lawrence da arábia do filme? Um sujeito complexo, para dizer o mínimo, que escreveu uma auto-biografia, Os Sete Pilares do Conhecimento. Auto-biografia é um jeito simplista de definir o tal livro. Oh livrinho difícil. É um diário, misturado com observações geniais sobre arte, arqueologia, filosofia, cultura oriental (arábe), enfim, o livro faz jus ao título.
Esse foi um dos empreendimentos que mais me dissuadiu quanto a eficiência da minha técnica de abordar meus objetos de desejo.
Depois de algum tempo e algumas pesquisas (o que significa sola de sapato, porque ainda não havia Google) passei a ficar curioso. Parecia-me uma grande empreitada fazer um filme sobre esse sujeito e tudo que ele abordava no livro: há coisas que são de uma complexidade e que atacam certos fundamentos de tudo aquilo que aprendemos e acreditamos ser correto. Por exemplo, eu acreditava que os arábes eram um povo selvagem, nunca me passara pela cabeça que os povos do deserto constituiam uma civilização, tão antiga, rica e complexa quanto a nossa e que, ela própria também não nos via com melhores olhos. Aquele homem branco e nobre inglês travestido de árabe, desesperadamente lutando para ser aceito como um igual entre os beduinos, visto com profundo despreso por eles. Tudo isso colocou os árabes noutro patamar e mudou minha visão de mundo.
O Lawrence não era só o transformista, o homem que vira bicho (sim, porque aos meus olhos, ele se tornara um selvagem do deserto), Lawrence é o político, o homem à altura da tarefa, um grande e verdadeiro intelectual, um homem de leis e de livros, mas também de ação. Lawrence negociou os tratados e acordos que puseram fim ao Império Otomano e armaram o palco para as primeira e segunda guerras mundiais. Há controvércias e um certo exagero em dizer isso, mas, mesmo que ele não tenha feito tudo sozinho, pode-se dizer que, no mínimo, Lawrence foi de suma importância na definição das fronteiras atuais do oriente médio (corre a lenda de que ele proprio traçou os mapas em seu gabinete).
Sei que muita gente pode dizer que isso significa que o tal tomou parte na fabricação de uma das maiores cicratizes abertas da política internacional do século XX e talvez do século XXI, mas quem faz esse tipo de crítica não tem idéia do ponto de partida do homem, das condições a partir das quais ele criou um modus vivendi precário é verdade, mas estável, que tem durado um século. Agora que os EUA estão in loco é que o fantasma se encarna, há tanto por ser feito que talvez a estada americana no Iraque se prolongue por mais tempo que o desejado pelos yankes em Washington.
Quando passei a admirar esse homem, passei a ama-lo e aí estava preparado para ver o filme, nada mais poderia me chatear, o longo enredo recheado de reuniões em gabinetes e tentas não seria mais im pedimento. Nem a organização cronológica confusa da narrativa no filme que começa mostrando a morte de Lawrece, para depois contar o seu porque (sei que essas coisas são comuns hoje depois de Pup Fiction e O Paciente Inglês, mas imagine essa ousadia narrativa na década de 1960), seria um impeditivo.
Por puro acaso, uma versão do diretor entrou em cartaz aqui em Belo Horizonte, no Cine Roxy, bem após eu ter concluído meu arrudeamento e eu tive a oportunidade de ver o filme no cinema.
Aqueles planos infinitos na telona. Olha, não dá para descrever, esse filme é um daqueles que justificam o cinema como uma forma de arte, é impossível traduzir apenas em palavras o que se vê, sem que se ampute algo. O elenco é magnífico Peter O'Toole, Alec Guinness, Anthony Quinn e Omar Sharif parecem tomados por espíritos alheios.
Minha cena predileta é aquela em que se sugere um provável abuso sexual sofrido por Lawrence após uma briga com um bando de árabes. Não vou dizer se isso aconteceu ou não de acordo com Os Sete Pilares da Sabedoria, já que o filme não é claro a esse respeito, mesmo porque agora quem assistir ao filme vai querer ler o livro e eu não quero tirar esse prazer de vocês, mas, do ponto de vista dramático, a cena é magnífica. Outra cena marcante é a da chegada de Lawrence a Suez, quando uma chaminé de navio surge por trás de uma duna, como eu disse é indescritível.
Livro e filme se sustentam por si mesmos, assim como penso eu o personagem histórico deve ter tido outra identidade jamais completamente traduzida, mas é bom ler um e ver outro para se aproximar mais desse homem sem par.
Hoje é 11 de setembro de 2005 e lembrar de Lawrence nos remete a muitas coisas de nosso passado recente.

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