9 de set. de 2005

Cogito Ergo Sum (O cão e seu próprio rabo ou a dialética da interpretação)


A Metamorfose do Narciso - 1937
Salvador Dali
Uma nova visita ao velho Marx
Há alguns clichês que são inescapáveis, como o da mocinha que ao fugir do vilão tropeça e cai da escada.

Marx é um autor que a cada leitura se mostra transmutado e sempre atual, esses são clichês dos quais não se pode escapar, mas que normalmente são ignorados não por uma mal intencionada interpretação, mas pelos bem intencionados oficiais interpretes da canônica obra.

Há sempre de prontidão uma interpretação que advoga a identidade de razão e como interpretação oficial se anuncia na tese "Marx queria dizer isso ao escrever isso..." Mas, não se sustenta na medida em que não é imediatamente aparente a intenção do agente autor ou esta só pode ser reconstruída a custa de aproximações sempre precárias na falta de um objeto de comparação analítica. De outra forma a identidade de razão nega outras interpretações possíveis e necessárias que, ainda que padeçam da falta de um objeto de comparação analítica e até por isso mesmo, se mostram verdadeiras e legitimas porque são frutos da contraposição de um leitor agente a um autor agente.

A interpretação oficial e sua identidade de razão historicamente se puseram a serviço da agência política pronta a não assumir a responsabilidade por conseqüências imprevistas ou indesejadas de seus atos, refugiando-se genericamente no erro interpretativo ou na vilania dos interesses que maculam o sacro santo altar da doutrina. Assim, ao negar a responsabilidade, nega-se a política e criam-se as bases para a transformação do político no fanático doutrinador à espera da redenção histórica. De outro lado, o lado dos inimigos da fé, há a disposição daqueles que aceitam o desafio da história como fazer diário, sem se apegar á doutrina da identidade da razão, mas fazendo da interpretação um novo diante do novo, que exige do agente político total compromisso com todas as decorrências e intercorrências do fazer político.

Um ou dois exemplos aclaram melhor o que se tem a dizer.

Recentemente tive que reler O Manifesto do Partido Comunista para preparar uma aula para meus alunos, digo isso para deixar claro que faço nova visita ao texto e havia em minha leitura um fim e assim já anuncio que não sou nem pretendo ser interprete isento.

À luz dos atuais acontecimentos da política brasileira não é possível ignorar algumas passagens do Manifesto. Logo de início, no que interpreto como sendo uma declaração de intenções, Marx afirma que um espectro paira sobre a Europa, o espectro do comunismo e que comunista é a pecha correntemente empregada para desqualificar o outro, desqualificando-o antes mesmo do embate e que é preciso opor a esse espectro um manifesto que traga às claras os verdadeiros comunistas, seu programa e suas intenções.

Também paira atualmente sobre o Brasil um espectro, o espectro da direita, do neoliberalismo e d'a zelite que como em 1848, também agora é a pecha que desqualifica o outro, que o anula antes do embate. É claro que é preciso opor a esse espectro um manifesto para que se traga ao dia os verdadeiros direitistas neoliberais, seu programa e suas intenções, até agora só apresentados por seus opositores, que paradoxalmente têm se apresentado como seus porta-vozes.

Há que se opor um manifesto que ponha a nu a farsa da transmutação que operada pela identidade da razão coloca os interpretes oficiais da doutrina na condição de não terem que apresentar em seu manifesto um programa real, mas apenas um grito de exposição da simetria social supostamente construída a partir dos obstáculos e da sanha flagelada da direita a serviço de interesses vis e alienígenas. Sendo essa a mágica que desvia os olhares das entrelinhas de seu manifesto onde insidiosa e dissimuladamente se esconde o programa de perpetuação do poder e colapso da democracia.

Farsa porque bradam: democracia, democracia! Mas desconhecem o significado da palavra, o compreendem a partir da identidade de razão, uma vez que pairam sobre a história sem compromissos com suas ações e a espera da redenção.

Como havia prometido dois exemplos, o segundo se avia. Marx também faz menção à sua grande teoria da história, teoria errada porque é inegável e monista ao anuncia tudo para não se comprometer com nada, que diz ser ela a história das lutas de classes, que a cada etapa se manifesta como o confronto entre duas classes específicas, culminando com a revolucionária transformação da sociedade ou com a extinção das classes em conflito.

O resto do manifesto é um desfile de argumentos que corroborariam a tese de que a moderna sociedade burguesa onde se digladiam burgueses e proletários se desmanchará na apoteose do proletariado, sabe Deus por quem escolhido para guiar a humanidade nessa nova travessia do Mar Vermelho. É aqui que o analista da história intencionalmente sai de cena para dar lugar ao profeta de que falávamos quanto mencionamos o fanático doutrinador e esse profeta nos toma por ignorantes ao supor que mudada identidade ou trocada a roupa nos esqueceremos facilmente do que acabara de ser dito poucas linhas antes. Não, nós não esquecemos. Há opções, a história não é uma desvairada corrida em circuito pré-estabelecido, há a extinção das classes em conflito e as evidências saltam dos últimos cento e cinqüenta anos de história que se passaram desde o manifesto. Mas o profeta não se preocupa com evidências, ele apenas chama para si a capacidade de demolir a ordem para em seguida reconstruí-la pela autoridade da palavra.

Com efeito, tudo isso é ignorado pela doutrina oficial, pelos interpretes da identidade de razão. E isso não é um traço da autodenominada esquerda nacional, uma espécie de jabuticaba ideológica a denotar os defeitos de nossa pobreza ou atraso intelectual. Isso frutificou alhures tanto quanto aqui, ontem e hoje.

O que nos distingue é que agora refazemos o caminho já percorrido por outros, lembram-se da releitura? E esse caminho que não é novo e esses pés que se negam a assumir responsabilidades pelo amargo e pelo triste do destino a ser alcançado são picadeiro de circo e pés de palhaço que ao ficarem com o profeta, esquecem o analista que disse que a história só se repete como farsa e pantomima. E de nossa farsa e pantomima não nasceu riso na platéia, por demais dramática e trágica, desconcertante para o mestre de picadeiro que se perdeu no anúncio do programa e pôs o rei nu na frente de todos, não como o Lear altivo na tempestade, mas como o bufão que é, o bobo que enganou a todos, mas que ficou sem repertório e agora torce para que se abrevie o espetáculo e a cortina desça conservando o que ainda lhe resta de dignidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Querido amigo, eternamente em conflito entre ser e não ser proletário,a mensagem de Marx no Manifesto é absolutamente clara: trabalhadores do mundo, uni-vos!!
É só o que tenho a dizer.
À parte teorizações, abstrações, creio que a identidade razão pode traduzir-se, acima de tudo, por uma identidade utilitária, que no caso brasileiro compromete várias gerações.
Aos jovens que, honradamente, ocupam os bancos escolares (da rede pública, com todo o respeito aos microempreendedores da elite)devemos permitir a autonomia do pensar e da reinterpretação. Não se pode, jamais, impedir o livre pensar e a livre crítica (apesar de odiar Arnaldo Jabor com sua crítica pragmática e tendenciosamente objetivando influenciar a opinião pública brasileira, do povo brasileiro, contra a presença da esquerda no poder).
Meus pensamentos, com toda a modéstia intelectual, não abrem mão da vitória de ser representada por um operário. E mais, de reconhecer a vulnerabilidade do poder nas mãos de um verdadeiro proletário.
Às favas com a direita! Jamais trairei minha origem humilde. Que o manifesto seja popularizado na distribuição e que cada brasileiro tenha a oportunidade de elaborar o pensamento, nos canteiros de obras, na cavoaria, nos campos de soja do falido (?)Olacir, nos mais distantes pontos desse país.
Que devorem o Manifesto e descubram-se, e desencamtem-se e passem a ser classe para si, enfim.
E que exijam, não somente a justiça e caça aos infratores e corruptos, mas que exerçam sua cidadania de fato. Não aquela concedida pelo Estado ou pelo Sinhozinho (como na análise de Faoro, do patrimonialismo herdado de Portugal.
Que o brasileiro tenha orgulho de sua Nação, e não delegue a outrem o direito de decidir pelos caminhos de seu país.
Acima de tudo, sou brasileira e não desisto nunca!!!
A solução para este país. Façamos a coisa certa, corrijamos o errado e fortaleçamos o certo.
Salve o Lula! Salve a esquerda!
Salve o Brasil!
Não abandonemos jamais a oportunidade maravilhosa que se abre para os excluídos, dominados, explorados. Capitalismo? Sim,pode ser... E que tudo reverta para erradicar a miséria moral, estomacal e intelectual.
Abraços afetuosos para amaciar essa alma atormentada.

Anônimo disse...

Roberto,
Primeiro, obrigada pelo presente! O texto é isso: um presente; as considereções sobre interpretação expõem a complexidade e a fragilidade do diálogo autor/leitor ao tempo em que dizem como essa é uma ação de comprometimento. Sou agente não mero expectador. Outra dádiva é o chamado para pensar idéias aparentemente tão claras, óbvias como democracia, neoliberalismo...
Parabéns e mais uma vez obrigada! Reitero a minha imensa satisfação de pertencer ao seu grupo de interlocutores.
Guiomar

Anônimo disse...

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