13 de dez. de 2006
Em Números
12 de dez. de 2006
Um ditador de pantufas

A morte de Pinochet reabriu feridas no Chile. Às portas da escola militar, onde é velado o corpo do ditador, enormes filas se formam com populares que desejam prestar a última homenagem ao ex-senhor da vida e da morte.
Em Cuba, o ditador está de pantufas.
Comparação sem propósito, diriam aqueles que enfrentam a polícia chilena, desconsolados por não terem julgado Pinochet em vida. Claro que não, crimes são crimes.
Ambos são genocidas, ambos não têm apresso algum pela liberdade, ambos não respeitam o direito à dissidência. Os motivos, as razões ou justificativas de cada um só são válidos para eles mesmo e para seus partidários.
A decadência dos dois deveria servir de alerta ao povo latinoamericano. Deveria, mas não serve.
A compulsão por regimes políticos exóticos parece ser um traço irremovível da personalidade cultural desses povos que vivem do lado de baixo do equador.
Chavez, Lula e Morales daqui a vinte anos causaram conflitos com suas mortes ou agonizaram de pantufas em cadeiras de balanço?
16 de nov. de 2006
Constitution
Em "An affair to remember" ou "Tarde Demais Para Esquecer" de 1957, Constitution era o nome do navio em que Cary Grant e Deborah Kerr cruzam o Oceano Atlântico. Ela retornando para América, para os braços seguros e ternos de seu milionário gentil; ele também, para os braços de seiscentos milhões de dólares de sua noiva aristocrata.
Lá se vão cinqüenta anos e mundo mudou tanto, piorou tanto. Para começar, em "Tarde Demais Para Esquecer" a riqueza não é parceira da vilania. Cary e Deborah resistem, mas traem pessoas ricas, gentis e compreensivas. Ricas é verdade, mas não governadas pelo ódio.
O amor justifica tudo, a paixão dos viajantes rivaliza com a segurança prometida à Deborah e Cary. A ela e a ele são oferecidos o conforto e a segurança nobiliárquicos de Manhattan. O que mais dois bon vivant, dois artistas errantes e aventureiros podem querer além de alguém para pagar o champagne rosé.
Mas os dois traem, abandonam tudo. Com premeditação e cinismo se prometem para dali seis meses, após a chegada a New York durantes, durante os quais avaliaram a possibilidade de viver de brisa como disse certa vez Manoel Bandeira. Premeditação pura. Concluem que sim, que é possível viver de brisa, que são seres de coração, governados pelo amor e só não retomam a paixão náutica, ainda no meio da fita, porque o destino intervém com crueldade, mas para exigir deles provas de sinceridade e não para puni-los. E leitor vai me perdoar, mas é preciso assistir ao filme para saber o que aconteceu.
Tudo isso acontece num ambiente em que ricos e pobres não são opostos beligerantes. Existe uma obrigação civilizadora na fortuna. Os bem afortunados não devem abandonar aqueles que ainda envergam sob a tirania da pobreza. Para todos é prometida a terra do amanhã, basta fechar os olhos e desejar e, mesmo que ninguém fale, é preciso trabalhar também. Assim como Terry, a personagem de Deborah, que faz de sua arte a ponte para que crianças pobres alcancem a terra do amanhã, a América também leva Constitution para o mundo.
Em 1957 os EUA não eram recebidos como o grande explorador imperial, não. A América já foi a civilizadora do mundo, a terra do amanhã. Os americanos ainda se regozijavam da vitória dos valores da civilização ocorrida na década anterior, a Coréia, mesmo dividida seria exibida como um triunfo americano, ainda não chegara os tempos de Vietnã, quando os americanos questionaram seus valores e voltaram-se para o seu cost-to-cost regado a ácido para esquecer o mundo, a realidade. Dá saudades da URSS, que impunha à América um adversário à altura, uma escolha, mesmo que no final o destino interviesse.
Hoje o cinema mudou, estamos todos com medo. O cinema é só contestação e dúvidas. Todo mundo é contestador e as crianças não tomam mais banho de chuva, nem saem de casa sozinhas. Michael Moore é o Orson Wells dos nossos dias. Que pena! A falta de adversários à altura ampliou o escopo de gente muito pequena.
BOOH! Há sempre alguém espreitando, os ricos estão sempre fazendo planos de tirania perpetua, a pobreza é um valor em si mesmo e a América deve ser varrida da face da Terra para sempre.
Por que o mundo ficou tão pior. Onde está o espírito Constitution, o que aconteceu com aqueles que um dia desejaram a terra do amanhã.
24 de jul. de 2006
Merchandising Social (o novo nome da lição de moral)
Terminava os episódios e um dos personagens fazia uma inseção de alguns segundos, onde lebrava a moral da história que tinhámos acabado de assistir.
Eu adorava o desenho, mas detestava aquela bobagem toda. Tá legal, eu já sabia que bem sempre vencia e eu assistia é para isso mesmo. Já falei o quanto a TV é responsável pelo meu surperego. Mas aquela inserção era de morte, parecia que os caras achavam que a gente era idiota e não tinha entendido do que tratava a história.
Dois fatos ocorridos no mesmo dia têm uma relação direta com a idiotice do tal merchandising social, outro dia fui cortar os cabelos, meus e do meu filho e, enquanto esperava ele ser atendido, fiquei lendo uma Veja, para ser mais preciso, lendo a entrevista das páginas amarelas, onde, detre outras coisas, o noveleiro Silvio de Abreu dizia que a evolução dos nossos folhetins televisivos não se deve ao aumento do padrão de exigência da audiência, que esse só tem decaido, consequência da qualidade ou falta dela na educação escolar do brasileiro médio, por outro lado é possível dizer que as tramas melhoraram em decorrência da competição entre os autores e que é até díficil desenvolver boas tramas em vista da incapacidade do espectador de compreender o que se passa.
Bom a nova novela das oito da TV Globo é uma prova da evolução da teledramaturgia brasileira. Atualmente, com o pomposo nome de merchandising social (tudo em inglês é mais bonito), ao final de cada capítulo, ilustres desconhecidos fazem inserções de alguns segundos para nos dar lições de moral.
O próximo passo nessa evolução será esconder o ilustre desconhecido entre os figurantes ou o cenário da novela e, ao final perguntar se você conseguiu encontra-lo durante o capítulo, pelo sim, pelo não, em seguida mostrar o frame onde a criatura aparece explicitamente. Lembram do Geninho da She-Ha, aquilo foi a evolução do He-Man. Depois do Geninho, eu até ouvia a baboseira do final, só para disputar com meus coleguinhas o trofeu da descoberta do esconderijo do gato-gambar, sei lá o que. Mas, isso só vai acontecer, quando a gente estiver bem treinado.
Felei que foram dois fatos e foram mesmo. Depois de cortar os cabelos, fomos assistir a Carros da Pixar e lá também tem lição de moral, mas, como sabem que as crianças são seres que interagem com as informações e não baús onde se jogam tralhas para guardar, os produres do filme deixam por conta dos espectadores a interpretação da lição.
Um adesivo
Acho que essa campanha será uma das mais limpas dos últimos tempos. É claro que quando digo limpa não me referido a nenhum avanço no sentido de não se onerar indevidamente o erário público. Claro está que nos encaminhamos para o financiamento público das campanhas, o que é o ataque legitimado dos cofres da nação.
A limpeza da atual campanha se dará no sentido de não emporcalharmos nossas cidades com propaganda. Aqui em Minas menos ainda, porque dada a vantagem do candidato a reeleição, o Governador Aécio Neves, nem ele, nem os adversários têm a menor necessidade de fazer grandes gastos com publicidade.
E a gente se sente até desinteressado em colar o adesivo no para-brisas, mas eu colei assim mesmo. Só para afrontar o concerto nacional pró PT.
A liberdade e a classe trabalhadora
Às classes trabalhadoras não se deve dar a opressão, deve-se deixa-las trabalhar. A liberdade não tem qualquer significado para elas.
Podolotria da fama
Vou chamar isso de complexo de pavão.
Piada
Homo x Hétero
De tudo que ouvi sobre o assunto, uma coisa me deixou particularmente intrigado. Alguém leu ou disse que a passeata também visava a afirmação da livre orientação sexual.
Vamos ler as sombras das palavras. Uma passeata do orgulho gay que afirme a livre orientação sexual, por mais que não seja essa a intenção explicita e tenho certeza que não é, intui, denota, insinua, etc. que a orientação hétero não é livre ou talvez alguém venha dizer que isso é caraminhola da minha cabeça, mania de perseguição, preconceito, etc. Não é!
O discurso oficial do movimento é muito centrado na questão da aceitação das diferenças ou, no mínimo, na livre convivência com as diferenças. Não sei se já falei isso aqui, mas se não falei, falo agora. Isso tudo me parece muito contraditório.
Historicamente, estou falando de década de 50 e 60, a identidade gay se associava com uma posição rebelde, outsider. Os gays não procuravam aceitação e tolerância, eles queriam romper com o status quo, transformar a sociedade, ainda que pacificamente, é inegável que esse conteúdo fazia parte da mística de movimentos como os dos hippies e gays de São Francisco, só para citar um caso emblemático, que identificavam a orientação hétero como um traço de conservadorismo.
Um outro conteúdo interessante no discurso oficial é o que vou chamar de naturalização X escolha. Afirma-se enfaticamente que a orientação sexual é resultado de uma escolha de uma opção, procura-se minimizar quaisquer causas dessa orientação relacionadas a impulsos orgânicos, inclusive como contra argumentação do discurso hétero que se apega, pelo menos em sua versão menos sofisticada, em funções orgânicas e religiosas-culturais para justificar a orientação sexual.
Tenho que impressão que o homossexualismo moderno (a partir de meados do século XIX até nossos dias) se reveste de um significado bastante diverso daquele correspondente à antigüidade. Para os antigos tratava-se sobretudo de conformação a imperativos culturais coletivos, ser homossexual em Roma ou na Grécia antiga não era um ato de rebeldia, antes de conformação e aceitação. Em nossa sociedade, o movimento pelo politicamente correto reverte um dos principais focos de rebeldia do século XX em ação pela família em prol da propriedade.
18 de jul. de 2006
Amenidades pop

A longa espera
10 de jun. de 2006
Polis (A longa noite dos cristais)
Um apedeuta popular, um povo inculto e um ufanismo cego, uma ideologia, eu quero uma para viver... Não somos nem um pouco criativos.
3 de abr. de 2006
A que ponto...
Reza a lenda que a desconfiança do mineiro se deve ao fato de por muito tempo ter degustado as notícias de segunda mão. A Corte sempre esteve ali no litoral. Ainda, segundo a lenda, o jeito de ser sorrateiro do povo das alterosas também se deve a esse, vamos chamar, complexo interiorano.
Está na hora de acrescentar mais algumas observações de fatos recentes que corroboram a lenda. Pelo que se vê em Belo Horizonte por esses dias, dias de Congresso do Banco Interamericano de Desenvolvimento, simplesmente BID, a coisa vai ficar complicada se algum dia a capital mineira sediar um evento de âmbito mundial, neste caso a opção será clara, abrigar temporariamente a população de BH em outra cidade. Chegou-se ao cúmulo de cogitar o fechamento da Avenida Afonso Pena, a principal da cidade, ao trânsito de pedestres. Temia-se um ataque terrorista.
Com o perdão do ?Estado de Minas?, o grande jornal dos mineiros, mas um ataque terrorista em BH não seria primeira página no The New York Times. Isso é substimar a inteligência terrorista.
Em sua mais legítima vontade de apresentar-se como bom anfitrião, o Governador Aécio Neves, fez de tudo para mostrar aos diretores do Banco o estupendo estágio de avanço da civilização mineira, decidiu, as três da tarde leva-los ao Mineirão para ver um jogo de futebol marcado para as nove e quarenta da noite. Até aí tudo bem, a eficiência logística da Polícia Militar de Minas Gerais se fez presente e, quando do início do jogo, anfitrião e convidados estavam dignamente acomodados em uma área vip construída em um par de horas e sob a guarda de um aparato de segurança digno dos que lá estavam presentes.
Fico a indagar meus mineiros botões, será que isso é realmente demonstração de civilização e eficiência ou nossos convidados, regressando a terra natal, não vão comentar que, quando aqui estiveram, foram recepcionados por um pequeno imperador que tinha todas as suas vontades atendidas e cujos súditos estejam dispostos a sacrificar sua rotina cotidiana para bem atender seus convidados.
Sou mineiro de um outro tipo, sou daqueles que, ao dá banquete, está sempre desconfiado se os convidados não vão sair falando da minha generosidade ou da minha falta responsabilidade por servir aos outros na festa aquilo que não gozo no dia-a-dia.
13 de mar. de 2006
Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)
A morte é essencialmente imprevisível no que respeita ao momento exato que fique claro, não se fala da morte como uma probabilidade. É o que se costuma pensar. Entretanto, não era esse o aspecto do óbito que pacificava a alma de Dona Helenilda. A irresponsabilidade, a inculpabilidade, o ar de inocência às avessas que se sobrepunha sobre os resultados de todos os atos do vivente após sua morte era o guia do comportamento daquela mulher. Havia uma atração infantil, um que de transgressão em tudo que ela fazia. Sim, porque se está a comprometer as sólidas bases de uma moral, que nos mantém em convivência pacifica, ao se pensar na morte como uma libertação e se comportar em vida ao sabor do instinto, sem esperar por um julgamento póstumo.
Aos cinco anos, Dona Helenilda já sabia ler e a partir de então tomou os livros como companheiros, desenvolveu profundo zelo por eles e os abraçou como uma vocação, um chamado, um fazer no mundo. Em contrapartida a humanidade foi fendida em duas metades, de um lado aqueles que, como ela, viviam a orbitar os livros, sejam como senhores criadores, conservadores ou como servos leitores e os demais pouco afeitos aos labirintos das letras. Aos primeiros, a liberdade da biblioteca, a falta de ordem, o folhear errático e os saltos entre as citações, aos últimos, o cordão de Ariadne, desde o balcão da bibliotecária até onde ela achasse por bem dar tensão e resgatar o indigno viajante.
A aparente amabilidade para com todos os usuários da biblioteca escondia essa sutil distinção entre os homens. Para uns a bibliotecária facultava direitos, a outros servia, livrando-os dos riscos, mas com profundo desprezo. A dispensável ordem em que os livros deveriam ser dispostos era a cadeia da lógica impessoal, o meio de garantir ao comum dos seres, desarmado das habilidades literárias, uma segurança dispensável ao senhor das letras, que se guiava por instinto, por sua sensibilidade, algo avesso às lógicas impessoais.
Essa era a causa de uns não encontrarem os livros. Dona Helenilda nunca os organizava nas estantes, segundo as ordens alfabéticas e numerológicas impessoais, antes os volumes eram dispostos segundo os amores da bibliotecária, uns mais próximos para contemplação constante, objetos de ardente paixão, outros a meio caminho, como amores mornos estáveis em quem se confia a ausência do olhar constante, outros ainda mais afastados, quase perdidos, uns restos de relações um dia incandescentes e rapidamente extintas ou desgastadas gradualmente pelo tempo e, por fim, junto a parede ao fundo, alguns que nunca chegaram a ser notados ou que causaram profunda tristeza, que traíram, que mentiram e por isso foram abandonados e repousavam desprezados num horizonte distante como inimigos além da fronteira. E, é claro, tal ordem não respeitava uma estabilidade cronológica, a paixão de hoje podia facilmente tornar-se o traidor de amanhã e uma nova faceta do ser amado recém descoberta, transformava-o em objeto de obscuros desejos de uma intimidade próxima.
Também se explicavam assim, as furtivas visitas que Dona Helenilda fazia à biblioteca durante a noite. Após cessar o movimento das ruas, quando todos os viventes ou estavam temporariamente entregues aos braços da morte ou dedicados às artes reclusas, a mulher caminhava pelas ruas, evidentemente sozinha, mas adjetivo dispensável, porque como se sabe, era de sua natureza ser sozinha a qualquer hora, adentrava a biblioteca, tomando o cuidado de trancar a porta por dentro, não por medo de ser surpreendida, mas para evitar que um dia ou, melhor dizendo, uma noite ter de prestar desnecessárias explicações a qualquer um dos reles servidores que de dia maculavam o lugar com seu comportamento de monótonos trabalhadores à espera da hora da saída. Pela mesma razão, Dona Helenilda também não acendia luzes o que lhe causava grande desconforto, mas era largamente recompensado pelo prazer que adivinha das horas de leitura e manuseio dos livros em meio ao silêncio e a escuridão. Então, antes que os viventes despertassem da provisória morte ou os amantes se dessem por satisfeitos e as horas de trabalho chamassem a todos, Dona Helenilda deixava a biblioteca e trancava a porta, desta vez por fora, agora pelos motivos que movem a todos, para manter os ladrões deste lado.
7 de mar. de 2006
Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)
A biblioteca estava sempre cheia, a quantidade de leitores que freqüentavam aquela biblioteca fazia inveja a outras unidades semelhantes. Era possível encontrar títulos com listas de até vinte leitores na reserva. Dona Helenilda atendia a todos e os conhecia pelo nome, além de estar sempre disposta a receber novos interessados. Era uma entusiasta dos benefícios da leitura para a educação e o progresso de um povo, mas não chegava a ser militante das grandes causas, limitava-se a fazer seu trabalho com eficiência, atendendo com toda a dedicação e presteza a todos os leitores.
Um desses leitores novos, um menino cuja aparente idade denotava que acabara de ser iniciado no mundo das letras, em suas primeiras visitas à biblioteca tomava logo o rumo do fichário de autores, jamais se soube porque ele não se interessava pelo fichário de títulos. De toda a forma o menino dirigia-se fichário de autores, escolhia, tomava nota com o lápis que ficava amarrado com um barbante sobre o fichário junto com uma caixinha onde havia retalhos de papel, constantemente reabastecidos por Dona Helenilda e, encaminhava-se para as estantes. Invariavelmente, nas primeiras visitas à biblioteca, o menino retornava das estantes com as mãos vazias e um olhava que informava, até para o mais insensível dos homens, a incomensurável decepção de não se achar algo por que se buscou.
Nesses momentos, o recurso imediato era Dona Helenilda, que estava sempre à disposição. Qualquer outra pessoa não se daria por rogado e diante de tal rotina de insucessos, passaria a desencorajar o leitor, que incapaz de encontrar os livros, jamais poderia lê-los. Afinal qual a dificuldade da tarefa de, estando de posse do nome de um autor, encontrar a ficha que lhe corresponde, nela elencar os títulos que lhe interessam para, em seguida, procurar o código do título e com ele se buscar às estantes devidamente organizadas, segundo a ordem numérica e lógica e, com as correspondentes etiquetas a indicar o caminho, a direção, o endereço o destino daquilo que se busca?
Tenha a santa paciência, some-se a isso o fato de todo o trabalho e dedicação depreendidos na organização de harmonioso sistema de buscas, estamos diante de um evento desses que deixa qualquer cristão possuído pelo senhor dos infernos. Mas Dona Helenilda não sentia ódio, ela não. Respondia a mesma pergunta quantas vezes ela fosse feita. O nosso menino então, pode ser que estivéssemos distraídos um dia ou outro e não tenhamos percebido e contado, mas foram bem umas dez ou doze vezes que ele se dirigiu a Dona Helenilda, sempre do mesmo jeito. Não encontrei o livro. Acho até que ele nunca encontrou um livro sem ajuda dela, mas todas as vezes, e isso podemos afirmar, ainda que correndo o riscos de termos nos distraído um dia ou outro, todas as vezes Dona Helenilda saiu do balcão, foi até a estante e os dois voltaram com o livro desejado. E a decepção daquele olhar anterior, agora era admiração e agradecimento.
Tem ou tem razão essa mulher em relação à adequação dos elementos concorrentes com os resultantes da educação. A paciência, a admiração, o agradecimento são as bases do caráter do bom mestre, não há quem não aprenda encontrando um mestre com esses predicados e, como resultado, a educação liberta, emancipa e ilumina o caráter do discípulo. No nosso caso, concorreu significativamente a atitude docente de Dona Helenilda na emancipação do menino em questão.
A prova do que se diz, já que para os incrédulos tudo tem que ter uma prova, a ciência não deve nega-las e a rotunda afirmação anterior ganha ares de teoria, é que o menino passou a ser um leitor regular, dia sim, dia não estava na biblioteca em busca de um novo livro, lia um livro a cada dois dias religiosamente, se é que religião necessita de tamanha carga de leitura. Mas isso, antes de provar a teoria pedagógica nunca escrita de Dona Helenilda, era a gratificação do trabalho e da dedicação daquela mulher, era o que tornava digno e válido o esforço cotidiano daquela servidora, porque certamente, já que estamos no campo das teorias, surgirão aqueles a dizer que paciência, admiração e agradecimento são os fomentadores da idolatria e da tirania cegas e que alguém que mesmo lendo um livro a cada dois dias, toda a vez que vai a biblioteca, recorre a bibliotecária para encontrar um livro não é livre, nem emancipado em nenhum dos sentidos dados pelo dicionário ou pelo uso corrente dessas palavras.
4 de mar. de 2006
Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)
Falando assim, como se vem falando do senhor diretor, até parece que o homem era um trabalhador menos dedicado, os mais atentos diriam até que o homem era relaxado mesmo, um preguiçoso. Nada mais leviano, ninguém chega a diretor assim, à toa, sem mais nem menos, quando pouco o sujeito precisa ser bom bajulador e há casos extremos em que além disso, a criatura acumula predicados de competência. Então, alto lá, o diretor da biblioteca era um homem talhado para o cargo, tinha perfil, como se diz atualmente, podia não ter lido muitos livros, lera alguns poucos é verdade, romance, romance mesmo, lera umas histórias de detetive, científicos ou filosóficos, os tinha em casa, numa bela estante que ficava logo na sala de estar, não havia como ignorar, era um homem de notório saber.
A administração da biblioteca era algo do qual não se podia fazer qualquer queixa. As verbas, para iniciar pelo calcanhar de Aquiles de qualquer administrador público, tinham prestações de contas impecáveis, invariavelmente somavam-se entradas e saídas, créditos e débitos, restos e acertos e nada, nenhum erro. O pessoal sempre satisfeito, motivado e produtivo, bastava ver como a biblioteca funcionava, nenhuma queixa por parte dos leitores, se houvesse um índice de satisfação medido em sorrisos e gargalhadas, o comparecimento à cantina, note bem, a qualquer hora do expediente, constatava o bem estar dos funcionários daquela biblioteca. Um exemplo para a administração pública. Soma-se a isso, o fato, já mencionado, de que essa competência era exercida sem que o diretor se quer precisasse abandonar sua sala ou mesmo levantar-se de sua cadeira. O apreço e o respeito dos demais funcionários por aquela figura era tamanho que, além de Dona Helenilda que, como se sabe, não ia à cantina, o diretor também recebia seu café em sua mesa com direto aos biscoitos água e sal e manteiga.
Agora, o melhor adjetivo aplicável àquele homem era, sem dúvida, democrata. Desde o primeiro dia em que assumiu o cargo, desde o primeiro momento, quando fez um discurso inaugural, logo após a nomeação, suas primeiras palavras foram, estou diretor, sou funcionário como todos os demais, minha gestão será marcada pela democracia e participação. Essas podem ser palavras ensaiadas, da boca para fora ou chavões, como se diz por aí, mas no caso de nosso diretor, foram postas em prática e o dia-a-dia da biblioteca o servia de testemunha, não se tomava uma só decisão, por menos importante que fosse o assunto, sem que todos se reunissem para debater, mesmo nas emergências, quando o rigor da hora obrigaria a qualquer outro usar de punho ditatorial, o diretor ouvia serenamente as críticas. Pode-se acusa-lo de tudo, mas não era um homem de idéias fixas, fechado a inovações, muito pelo contrário, mudava de idéia sempre, tudo a bem da boa administração e da satisfação dos contribuintes, os verdadeiros guias do serviço público, como fez questão de afirmar ao final do já referido discurso.
3 de mar. de 2006
Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)
Aqui, ali, acolá, sempre prestativa. Dona Helenilda era um faz tudo na biblioteca, atendia, guardava livros, organizava fichas, limpava, pintava e bordava. Um dia o diretor questionou-se da necessidade de tantos funcionários para manter a biblioteca em funcionamento. Desnecessário dizer que essa era a principal razão das intrigas contra aquela exemplar funcionária e que, em se tratando de repartição pública, jamais qualquer plano de reestruturação do quadro de pessoal seria posto em prática.
Um batalhão de arquivistas, restauradores que preferiam ser chamados de técnicos em manutenção do patrimônio, e até faxineiros habitava a biblioteca. Todos chegavam depois de Dona Helenilda e só começavam a trabalhar no momento em que o ponteiro do relógio que ficava preso no alto da parede do saguão da biblioteca se sobrepunha ao número XII, até aí era um burburinho de conversas e risadas que preenchia do saguão. Às sete horas, em ponto, o porteiro abria as portas, modo de dizer, que era só uma porta, que dava da biblioteca para a via pública. E tarefa de porteiro resume-se a abrir e fechar as portas, então o homem, na forma da lei, se dirigia para a cantina e de lá retornava às dezessete horas para fechar as portas, e como as abria, as fechava, estivesse alguém querendo entrar, só entrava após as sete, estivesse na biblioteca, se retirava antes das dezessete.
A cantina, o coração do dragão, era um burburinho só, o dia inteiro. A copeira, dedicada e prendada funcionária, provedora de diários seis litros de café, era testemunha viva do rigor do serviço público, única pessoa a ocupar um posto na biblioteca vago após uma demissão de outro servidor por incompetência. A copeira anterior fora demitida a bem do serviço público, fazia um café intragável. Assim que chegaram as primeiras denúncias, o senhor diretor nem mesmo promoveu o chamado inquérito administrativo, de certo que ele próprio conhecia a falta de capacidade da funcionária, tratou de expedir ofícios e despachos e logo a mulher estava na rua e sua substituta contratada.
A atual copeira era mulher de ciência, em sua primeira semana tratou de fazer minucioso levantamento dos gostos de todos os funcionários, forte, fraco, preto, suave, com muito ou com pouco açúcar, amargo, com adoçante, em copo, em xícara, com leite ou puro. Havia a certeza de que ao se encostar no balcão da cantina, se receberia exatamente aquilo que se queria, ninguém mais precisava fazer pedidos minuciosos. Em poucos dias, todas as garrafas térmicas estavam com etiquetas. Assim, ficou fácil saber porque a copeira anterior fora demitida. Sobrou um único desafio ao cuidadoso e detalhado levantamento, Dona Helenilda. Para esta, tanto fazia, jamais notara na copeira que fora demitida, constantemente esquecia-se de tomar o café que lhe era trazido, abandonava-o para ser recolhido e jogado no lixo. Zelosa de seu trabalho, a copeira chegou a interroga-la, se não gostava do café e testou diferentes receitas, mas sem sucesso. A conclusão era cientificamente clara, Dona Helenilda era indiferente ao café.
Dia após dia, essa era a rotina da biblioteca, os leitores eram atendidos, faziam seus empréstimos, suas devoluções, pagavam multas, faziam inscrição, procuram livros para pesquisa e para diversão ou vinham apenas para ler o diário. A biblioteca sempre cheia, jovens estudantes, donas de casa ou idosos à procura de um passa-tempo.
2 de mar. de 2006
Um Dedo de Prosa (literatura de autoria própria)
I
Dona Helenilda era dessas personagens prontas, dessas que Veja elogia abundantemente, não precisava inventar nada, o verdadeiro sonho de autor. Um corpanzil embrulhado na chita mais extravagante, cabelo em coque preso por um lápis, óculos de armação de tartaruga e, mesmo nos dias mais frios de inverno, uma gotinha de suor percorrendo a fronte.
O melhor de tudo é que Dona Helenilda estava sempre na biblioteca, todos os dias era a primeira funcionária a chegar, o diretor há muitos anos já lhe confiara as chaves, das quais não havia outra cópia. Pontualmente, as sete da manhã, ela já estava atrás do balcão. Eficiência ímpar, elogiada até pelo Governador. Qualquer livro que se quisesse, bastava pedir que Dona Helenilda indicava a estante. Sem exageros, mas naquela época não havia computadores.
A eficiência de Dona Helenilda só se comparava com sua modéstia. A mulher era uma referência, espécie de ponto turístico. Quando alguém recebia uma visita, logo levava o recém chegado à biblioteca. O forasteiro, claro, era só exclamação de espanto. Como podia aquilo, um livro após o outro, todos ela sabia onde estavam. Que memória! Nada, meu filho, não lembro de nada, é só organização. Pura eficiência e modéstia.
Entre os demais funcionários da biblioteca a admiração não era um sentimento unânime, havia um ou outro que dizia que Dona Helenilda chegava mais cedo porque morava a paredes meias com a biblioteca, que ela só sabia a localização exata de todos os livros, porque era sempre ela quem os arrumava. Alguns desses, por assim dizer descontentes, até chegavam a fazer queixas ao diretor. Mas o homem nem se dava o trabalho de levantar da cadeira, apenas dizia que faria averiguações das faltas denunciadas, mas nunca inquiriu Dona Helenilda. Para dizer a verdade, se não notássemos a entrada e saída do diretor no início e no término do expediente, seriamos tentados a afirmar que o homem dormia na biblioteca, sentado na cadeira, atrás da mesa onde havia uma bem polida placa de metal sobre um pedestal de madeira onde se lia DIRETOR.
As intrigas sempre chegavam aos ouvidos da zelosa bibliotecária. O cafezinho precisava ser embalado por alguma conversar e o assunto circulava por amenidades mil e por horas a fio, enquanto os funcionários se revesavam na cantina, antes de eleger o cotidiano da repartição como o grande assunto. Nessa hora formavam-se duas facções. Uns que davam a conhecer as intrigas, inconformados com as injustiças das acusações caluniosas e outros, é bem verdade a minoria, sempre a propalar as alegadas faltas de Dona Helenilda, à espera de seu descontrole ou de uma reação menos educada, para aí sim, trazer à tona o verdadeiro caráter daquela senhora. Mas, em vida, Dona Helenilda jamais motivou tanto, era só serenidade, nem na cantina aparecia. Só tomava café quando a copeira lembrava-se de levar-lhe uma xícara até o balcão ou entre as prateleiras, onde estava arrumando os livros.
28 de fev. de 2006
Polis (Imagens e Palavras)
Quando o Brasil contribuiu para a estabilização do Haiti e o estabelecimento de uma autoridade democraticamente legítima naquele país, o país - por ser líder das forças de paz - e ONU tiveram a oportunidade de realmente iniciar um processo histórico novo, desvinculado do passado de abusos e golpes políticos que marcou a história haitiana desde a independência em 1804 ou 1820 (como queiram).
O que se viu desde então foi uma sucessão de erros (a incapacidade das forças de paz de garantirem a paz, a incapacidade dos órgãos de ajuda humanitária em debelar a fome crônica, o suicídio de um general - consciente de suas limitações e da exposição desnecessária de suas tropas - e, por último, mas não menos importante, uma eleição meia boca que vai desestabilizar o futuro da nação haitiana). Erros, é um eufemismo, um modo polido de dizer, um jeito de não trazer à tona os precedentes, os passos em falso que poderiam ser corrigidos.
Quando, em 2001, o presidente americano tomou a decisão de unilateral de declarar guerra contra o terror, não faltaram os baluartes do bom senso a dizer que a ONU deveria ser consultada (no mínimo), que o que Bush fazia era wanted dead or alive justiça far western. Pois bem, a Casa Branca foi adiante, depôs o talibã, organizou um governo novo no Afeganistão, depôs Sadan Hussein e também organizou um governo novo no Iraque. Em meio a bombas e fanatismo, o empreendimento americano trouxe uma nação da idade média para a civilização e resgatou outra dos idos da década de 40. Quem é o ignorante, o cowboy armado, quem garantiu, ainda que sob pena de romper temporariamente valores íntimos da cultura americana, que solo ianque não fosse mais machado por atentados terroristas, quem estava certo Bush ou Michael Moore, que lotou cinemas com o seu porcumentário (como foi bem definido nas páginas de PRIMEIRA LEITURA) onde desmoralizava a Casa Branca, quem?
É preciso lembrar à ONU que apesar do belo discurso da convivência harmônica entre diferentes, não é a civilização ocidental que tem rejeitado o resto do mundo. O palavreado fácil e irresponsável que corre pelos Fóruns Sociais Mundiais, arrota grandes bordões (Sistema Capitalista, Globalização, Imperialismo, etc.) como se a civilização ocidental fosse monolítica e houvesse uma grande inteligência a reger os atos de todos os homens e mulheres que vivem suas vidinhas cotidianas esquecidos de seu dever de opressores de povos menos afortunados. Se há tal inteligência, ela deveria se empenhar em um destino manifesto civilizador, transformador da cultura política arcaica e moribunda que foi desalojada na Europa e na América do Norte nos séculos XVIII e XIX, mas que insiste em manter-se em boa parte da Ásia, África e América Latina.
O Brasil e a ONU, ao darem um jeitinho na eleição do Haiti e deixarem de apurar as fraudes e punir os culpados, dando transparência à eleição e legitimidade ao novo governo, legaram uma herança de fome, ignorância, violência e instabilidade política àquela república. O Haiti não será melhor do que era após a intervenção da ONU.